O SEGREDO DE BELA
Depois de cumprido o que considerava um dever
– tentar convencer Tó Zé, o seu ex, a ajudar o filho de ambos – Nanda levou o
Nero a passear.
Após ter comido e bebido, o pobre cão estava
tão aflito que, mal se apanhou na rua, alçou a perna no arbusto mais próximo,
não tendo já capacidade vesical para aguentar até à árvore que normalmente
regava com os seus fluídos urinários.
Nanda ia de tal modo absorta nos seus
pensamentos que nem se apercebeu de que estava a ser conduzida pelo Nero. Só
quando sentiu uma forte pressão na trela se lembrou do local onde se encontrava
e do que estava ali a fazer – a passear o cão.
Arrastada pelo animal, acabou por dar quase
de frente com a vizinha do lado, também ela dona de um canídeo, mas do sexo
oposto.
A Diana era uma cadelinha que vivia
apaixonada pelo Nero, o qual correspondia, com fidelidade canina, a esse amor.
Feitos os cumprimentos, das donas e
principalmente dos seus estimados animais, estes, com encostos de focinhos e
outras expressões de afecto, preparavam-se para ir mais longe nas suas
manifestações, mas foram severamente interrompidos pelas respectivas donas que,
de momento, não tinham muito tempo para lhes permitir grandes efusões.
Puxando-os com força pelas trelas conseguiram
que se afastassem. Os pobres animais, contrariados, tiveram que obedecer, mas
ficaram olhando para trás, mirando-se um ao outro, com um ar muito desconsolado
e infeliz.
De regresso a casa Nanda deu uma arrumadela às
roupas que usara no dia anterior, compôs a cama, passou pela cozinha e pela
sala, e, considerando que tudo estava mais ou menos apresentável, apressou-se a
ir tomar um refrescante banho e vestir roupas elegantes para ir encontra-se com
a Bela.
Já estava ligeiramente atrasada.
Assim, quando chegou ao “Caminho de Casa” a
amiga já a aguardava.
Abraçaram-se efusivamente e, depois de uns
ruidosos beijos, escolheram uma mesa e sentaram-se.
A conversa só foi interrompida para
encomendarem o almoço. Escolheram salada para ambas já que andavam a tentar
perder peso.
Nem uma nem outra precisava disso, mas
preocupavam-se com umas gordurinhas embirrantes que teimavam em alojar-se
“naquela zona da cintura”. Sonhavam voltar a ter as “cinturinhas de vespa” dos
seus vinte anos…
Falaram de tudo e de nada, como se há muito
tempo não se vissem.
Esqueciam-se que conversavam todos os dias,
faziam caminhada juntas, e de vez em quando encontravam-se para almoçar. Mas
nunca lhes faltava assunto.
Nanda pôs Bela ao corrente dos últimos
acontecimentos, dizendo-lhe como se sentia baralhada com tudo o que lhe estava
a acontecer.
- Só para veres como estas coisas me estão a
afectar… imagina que até
comecei a pensar na hipótese de ir trabalhar
com o TóZé, aquele traste!
- Bem, na verdade isso mostra que a tua
cabeça anda à razão de juros. Espero bem que tenha sido apenas um pensamento
passageiro, e que não leves isso a sério…
- Não, claro que não; nem que o Tó Zé fosse o
último homem no mundo eu quereria estar perto dele!
E continuaram conversando animadamente.
Sendo ambas divorciadas, sem ter que dar
satisfações a ninguém, às vezes iam para a “night” beberricar uns copos e
divertir-se.
Foi o que combinaram fazer. À noite, depois
de comerem qualquer coisa, encontrar-se-iam e iriam para a paródia.
À hora combinada lá estavam elas, “vestidas
para matar” e lindamente maquilhadas. E alegremente passaram umas horas nos
locais já conhecidos de ambas, onde sabiam poder estar sossegadas, sem correrem
o risco de serem mal interpretadas e sofrerem dissabores.
Ouviram música, beberam sem exagero, e ainda
deram um “pezinho de dança” com conhecidos de outras vezes que lá tinham ido.
Quando se sentiram satisfeitas regressaram,
e, próximo de casa, despediram-se com um “até amanhã”.
Nanda entrou no seu apartamento, tirou os
sapatos, trocou a roupa pelo pijama e, como ainda não tinha sono, apesar da
hora adiantada, quase de madrugada, foi para a sala.
Ligou a música em tom baixo, e abriu a porta
do bar, do lado direito do aparador. Olhou, procurando a bebida que iria beber.
Não lhe apetecia muito um licor – àquela hora não queria uma bebida doce. Optou
por Whisky. Serviu-se, foi à cozinha buscar gelo, e, à média luz, recostou-se
no sofá.
De olhos fechados deliciava-se ouvindo a
música suave, tomando um gole de whisky, vagarosamente. Sem opor resistência,
como num sonho, deixava-se embalar por aquela quietude.
Lentamente, como que a levitar, encaminhou-se
para a janela e olhou lá para fora. Na semi claridade do alvorecer avistou, na
praia, um vulto que lhe pareceu familiar.
Mas… Não! Não podia ser verdade! Aquela
figura que caminhava na praia, a princípio apenas difusa, à medida que se
aproximava… sim, não havia dúvidas! Era o Luís. Mas porque andaria ele na
praia, àquela hora matinal?
Na longínqua linha do horizonte vislumbravam-se já
os primeiros rubores da alvorada, anunciando mais um dia de sol e calor.
Na praia, Luís, descalço na areia fria, um ar
desalentado, ombros descaídos, no rosto bronzeado as fundas olheiras denunciavam
uma longa noite de insónia.
Com visível esforço ia caminhando lentamente quando,
inesperadamente, avistou o seu irmão André.
Este, alegremente, aproximou-se em passo rápido
para saudar o irmão; mas imobilizou-se ao atentar bem no aspecto de Luís. Com ar
de espanto, exclamou:
- Eh! Pá, estás cá com uma cara que mete medo ao
susto!
- Não me digas nada, pá. Nem imaginas o que me
aconteceu.
- Não, não posso imaginar o que te pôs nesse
estado! Viste algum fantasma?
- Bem pior do que isso… mas antes diz-me: o que
fazes tu aqui na praia a estas horas, com esse ar tão feliz? Ainda mal nasceu o
dia…
- Eu conto, sim, mas depois. Primeiro quero saber
de ti.
Nanda abria a boca de espanto. Como era possível? O
seu filho André vivia na Suíça, com a Silvana: o Luís ainda ontem estava no
Algarve, acabara de ser pai… A que propósito estavam os dois ali na praia,
conversando como se se tivessem visto na véspera?
Resolveu continuar a prestar atenção à conversa dos
dois irmãos.
- Tudo bem, então eu falo primeiro – respondeu Luís.
Ontem, para festejar o nascimento do meu filho (a
mãe contou-te… penso eu) fui com uns amigos beber umas granjolas. A certa
altura o Xico (lembras-te dele…) propôs que passássemos para bebidas mais
fortes. A ocasião até justificava… e todos concordaram.
Já estávamos bem bebidos quando entra no bar um
grupo de mulheres, todas em grande risota. Depois de ligeira hesitação,
cochicharam e dirigiram-se para a nossa mesa. Imagina quem fazia parte do
grupo… A Bela!
- O quê? A Bela, amiga da mãe?
- Claro! Conheces mais alguma Bela?
- Não. Mas continua.
Neste ponto Nanda sentiu-se desfalecer. Bela, a sua
melhor amiga, num bar “daqueles”? Não podia ser. O seu filho Luís devia estar
completamente bêbado e tinha-a confundido com uma galdéria qualquer!...
Com esta ideia recuperou a calma e continuou
ouvindo a conversa. Luís dizia:
- Sentaram-se ao pé de nós e pediram bebidas iguais
às nossas. Não sei quanto tempo depois disseram que se iam embora, e ali mesmo
se formaram casais… A mim calhou-me a Bela.
- O quê? Estás a brincar!...
- Antes estivesse… Mas não estou, aconteceu mesmo.
Fui com a Bela para casa dela. Levou-me para o quarto e… enfim, podes imaginar
o que se seguiu. Tu conheces a Bela…
- Conheço, conheço…
- Sabes que ela consegue ser espantosa! Mete-te no
coração e tu nem te atreves a reagir…
- Lá isso é verdade…
-Pois então! Quando dei com aqueles olhos líquidos,
que prometiam delírios, a fixarem-me intensamente, quando me senti docemente
envolvido nos seus braços, a Bela desprendeu-se, foi até à porta do quarto,
abriu-a, e, em altos brados, exclamou:
- SURPRESA!
Foi mesmo uma surpresa, uma enorme surpresa!
Afastando-se para o lado apresentou-me uma mulher
horrenda!
Não era ainda velha, mas feia como a noite dos
trovões! Um olho abaixo e outro acima, mirando cada um para seu lado, a boca
torta, desdentada, ostentando um sorriso alvar. Só lhe faltavam os pêlos no
nariz para ser uma autêntica bruxa, saída de um conto de Andersen.
- E qual foi a tua reacção?
- A princípio fiquei sem acção. Mas quando vi o
riso de escárnio e gozo na cara da Bela… atirei-me – literalmente – pela
janela, meti-me no carro, e vim para aqui. Sabes como o mar é para mim um
calmante…
- Razão tens tu para estar com esse aspecto
horrível…
- Digo-te, foi a pior experiência da minha vida.
Mas diz-me tu agora: com esse ar tão feliz…onde passaste a noite?
- Eu? Eu… passei a noite com a Bela.
Excerto do meu projecto literário com o
título (provisório) “ Segredos”.
Maria Caiano Azevedo